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    A Velhice Pede Desculpas

    Tão velho estou como árvore no inverno, 
    vulcão sufocado, pássaro sonolento. 
    Tão velho estou, de pálpebras baixas, 
    acostumado apenas ao som das músicas, 
    à forma das letras. 

    Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético 
    dos provisórios dias do mundo: 
    Mas há um sol eterno, eterno e brando 
    e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir. 

    Desculpai-me esta face, que se fez resignada: 
    já não é a minha, mas a do tempo, 
    com seus muitos episódios. 

    Desculpai-me não ser bem eu: 
    mas um fantasma de tudo. 
    Recebereis em mim muitos mil anos, é certo, 
    com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras. 

    Desculpai-me viver ainda: 
    que os destroços, mesmo os da maior glória, 
    são na verdade só destroços, destroços. 

    Cecília Meireles, in 'Poemas (1958)'

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  • Quando

    Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta 
    Continuará o jardim, o céu e o mar, 
    E como hoje igualmente hão-de bailar 
    As quatro estações à minha porta. 

    Outros em Abril passarão no pomar 
    Em que eu tantas vezes passei, 
    Haverá longos poentes sobre o mar, 
    Outros amarão as coisas que eu amei. 

    Será o mesmo brilho, a mesma festa, 
    Será o mesmo jardim à minha porta, 
    E os cabelos doirados da floresta, 
    Como se eu não estivesse morta. 

    Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar' 

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    Não Estou Pensando em Nada

    Não estou pensando em nada 
    E essa coisa central, que é coisa nenhuma, 
    É-me agradável como o ar da noite, 
    Fresco em contraste com o verão quente do dia, 

    Não estou pensando em nada, e que bom! 

    Pensar em nada 
    É ter a alma própria e inteira. 
    Pensar em nada 
    É viver intimamente 
    O fluxo e o refluxo da vida... 
    Não estou pensando em nada. 
    E como se me tivesse encostado mal. 
    Uma dor nas costas, ou num lado das costas, 
    Há um amargo de boca na minha alma: 
    É que, no fim de contas, 
    Não estou pensando em nada, 
    Mas realmente em nada, 
    Em nada... 

    Álvaro de Campos, in "Poemas" 

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    Estou Cansado

    Estou cansado, é claro, 
    Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. 
    De que estou cansado, não sei: 
    De nada me serviria sabê-lo, 
    Pois o cansaço fica na mesma. 
    A ferida dói como dói 
    E não em função da causa que a produziu. 
    Sim, estou cansado, 
    E um pouco sorridente 
    De o cansaço ser só isto — 
    Uma vontade de sono no corpo, 
    Um desejo de não pensar na alma, 
    E por cima de tudo uma transparência lúcida 
    Do entendimento retrospectivo... 
    E a luxúria única de não ter já esperanças? 
    Sou inteligente; eis tudo. 
    Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto, 
    E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá, 
    Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa. 

    Álvaro de Campos, in "Poemas" 

     


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    Estou Tonto

    Estou tonto, 
    Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar, 
    Ou de ambas as coisas. 
    O que sei é que estou tonto 
    E não sei bem se me devo levantar da cadeira 
    Ou como me levantar dela. 
    Fiquemos nisto: estou tonto. 

    Afinal 
    Que vida fiz eu da vida? 
    Nada. 
    Tudo interstícios, 
    Tudo aproximações, 
    Tudo função do irregular e do absurdo, 
    Tudo nada. 
    É por isso que estou tonto ... 

    Agora 
    Todas as manhãs me levanto 
    Tonto ... 

    Sim, verdadeiramente tonto... 
    Sem saber em mim e meu nome, 
    Sem saber onde estou, 
    Sem saber o que fui, 
    Sem saber nada. 

    Mas se isto é assim, é assim. 
    Deixo-me estar na cadeira, 
    Estou tonto. 
    Bem, estou tonto. 
    Fico sentado 
    E tonto, 
    Sim, tonto, 
    Tonto... 
    Tonto. 

    Álvaro de Campos, in "Poemas" 
    Heterónimo de Fernando Pessoa 
    // Consultar versos e eventuais rimas

     


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