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    Ainda que sendo tarde e em vão,
    perguntarei por que motivo
    tudo quando eu quis de mais vivo
    tinha por cima escrito: "Não"

    Cecília Meireles


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  • Eu

     

    Eu sou a que no mundo anda perdida,

    Eu sou a que na vida não tem norte,

    Sou a irmã do Sonho,e desta sorte

    Sou a crucificada ... a dolorida ...

    Sombra de névoa tênue e esvaecida,

    E que o destino amargo, triste e forte,

    Impele brutalmente para a morte!

    Alma de luto sempre incompreendida!...

    Sou aquela que passa e ninguém vê...

    Sou a que chamam triste sem o ser...

    Sou a que chora sem saber porquê...

    Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

    Alguém que veio ao mundo pra me ver,

    E que nunca na vida me encontrou!



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  •  Lágrimas ocultas

     

     

    Se me ponho a cismar em outras eras

    Em que ri e cantei, em que era querida,

    Parece-me que foi noutras esferas,

    Parece-me que foi numa outra vida...

     

    E a minha triste boca dolorida,

    Que dantes tinha o rir das primaveras,

    Esbate as linhas graves e severas

    E cai num abandono de esquecida!

     

    E fico, pensativa, olhando o vago...

    Toma a brandura plácida dum lago

    O meu rosto de monja de marfim...

     

    E as lágrimas que choro, branca e calma,

    Ninguém as vê brotar dentro da alma!

    Ninguém as vê cair dentro de mim!

     

                                 Florbela Espanca


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    A Velhice Pede Desculpas

    Tão velho estou como árvore no inverno, 
    vulcão sufocado, pássaro sonolento. 
    Tão velho estou, de pálpebras baixas, 
    acostumado apenas ao som das músicas, 
    à forma das letras. 

    Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético 
    dos provisórios dias do mundo: 
    Mas há um sol eterno, eterno e brando 
    e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir. 

    Desculpai-me esta face, que se fez resignada: 
    já não é a minha, mas a do tempo, 
    com seus muitos episódios. 

    Desculpai-me não ser bem eu: 
    mas um fantasma de tudo. 
    Recebereis em mim muitos mil anos, é certo, 
    com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras. 

    Desculpai-me viver ainda: 
    que os destroços, mesmo os da maior glória, 
    são na verdade só destroços, destroços. 

    Cecília Meireles, in 'Poemas (1958)'

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  • Quando

    Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta 
    Continuará o jardim, o céu e o mar, 
    E como hoje igualmente hão-de bailar 
    As quatro estações à minha porta. 

    Outros em Abril passarão no pomar 
    Em que eu tantas vezes passei, 
    Haverá longos poentes sobre o mar, 
    Outros amarão as coisas que eu amei. 

    Será o mesmo brilho, a mesma festa, 
    Será o mesmo jardim à minha porta, 
    E os cabelos doirados da floresta, 
    Como se eu não estivesse morta. 

    Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar' 

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