• Mãe:

    Que desgraça na vida aconteceu,

    Que ficaste insensível e gelada?

    Que todo o teu perfil se endureceu

    Numa linha severa e desenhada?

     

    Como as estátuas, que são gente nossa

    Cansada de palavras e ternura,

    Assim tu me pareces no teu leito.

    Presença cinzelada em pedra dura,

    Que não tem coração dentro do peito.

     

    Chamo aos gritos por ti — não me respondes.

    Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.

    Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes

    Por detrás do terror deste vazio.

     

    Mãe:

    Abre os olhos ao menos, diz que sim!

    Diz que me vês ainda, que me queres.

    Que és a eterna mulher entre as mulheres.

    Que nem a morte te afastou de mim!

     

     

    Miguel Torga, in 'Diário IV'


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  • Soneto do Amor Total

     

    Amo-te tanto, meu amor… não cante

    O humano coração com mais verdade…

    Amo-te como amigo e como amante

    Numa sempre diversa realidade

     

    Amo-te afim, de um calmo amor prestante,

    E te amo além, presente na saudade.

    Amo-te, enfim, com grande liberdade

    Dentro da eternidade e a cada instante.

     

    Amo-te como um bicho, simplesmente,

    De um amor sem mistério e sem virtude

    Com um desejo maciço e permanente.

     

    E de te amar assim muito e amiúde,

    É que um dia em teu corpo de repente

     

    Hei de morrer de amar mais do que pude.


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  • Soneto de Fidelidade

     

    De tudo ao meu amor serei atento

    Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

    Que mesmo em face do maior encanto

    Dele se encante mais meu pensamento.

     

    Quero vivê-lo em cada vão momento

    E em seu louvor hei de espalhar meu canto

    E rir meu riso e derramar meu pranto

    Ao seu pesar ou seu contentamento

     

    E assim, quando mais tarde me procure

    Quem sabe a morte, angústia de quem vive

    Quem sabe a solidão, fim de quem ama

     

    Eu possa me dizer do amor (que tive):

    Que não seja imortal, posto que é chama

     

    Mas que seja infinito enquanto dure.


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  • Não sei quantas almas tenho

     

    Não sei quantas almas tenho.

    Cada momento mudei.

    Continuamente me estranho.

    Nunca me vi nem acabei.

    De tanto ser, só tenho alma.

    Quem tem alma não tem calma.

    Quem vê é só o que vê,

    Quem sente não é quem é,

     

    Atento ao que sou e vejo,

    Torno-me eles e não eu.

    Cada meu sonho ou desejo

    É do que nasce e não meu.

    Sou minha própria paisagem;

    Assisto à minha passagem,

    Diverso, móbil e só,

    Não sei sentir-me onde estou.

     

    Por isso, alheio, vou lendo

    Como páginas, meu ser.

    O que segue não prevendo,

    O que passou a esquecer.

    Noto à margem do que li

    O que julguei que senti.

    Releio e digo: “Fui eu?”

     

    Deus sabe, porque o escreveu.


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  •  

    Presságio

     

    O amor, quando se revela,

    Não se sabe revelar.

    Sabe bem olhar pra ela,

    Mas não lhe sabe falar.

     

    Quem quer dizer o que sente

    Não sabe o que há de dizer.

    Fala: parece que mente…

    Cala: parece esquecer…

     

    Ah, mas se ela adivinhasse,

    Se pudesse ouvir o olhar,

    E se um olhar lhe bastasse

    Pra saber que a estão a amar!

     

    Mas quem sente muito, cala;

    Quem quer dizer quanto sente

    Fica sem alma nem fala,

    Fica só, inteiramente!

     

    Mas se isto puder contar-lhe

    O que não lhe ouso contar,

    Já não terei que falar-lhe

     

    Porque lhe estou a falar…


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